terça-feira, 12 de agosto de 2008

Baila comigo


"Não tirem suas crianças da frente porque a Caravana Rolidey vai invadir o pedaço num alto e bom som, com muito blush e batom, canhões de luz, camisetas de Che Guevara e Jesus, neste circo patafísico capaz de remover montanhas e modificar o curso dos rios. Hoje é dia de rock e não viemos aqui a passeio. Sim, somos esquisitões mesmo, mas queremos apenas te seqüestrar dessa vidinha besta e por algumas horas oferecer um Olimpo de calmaria no meio de tantos tsunamis ideológicos.

Ir pra estrada é coisa pra cigano nenhum botar defeito. Me lembro de quando aterrissamos nosso disco voador numa modesta aldeia do Nordeste munidos de um microfone sem fio que tinha custado uma nota preta. Na passagem de som os 'índios' foram se chegando na beira do palco e se entreolhavam boquiabertos.

Depois de um certo tempo alguém da tribo começou a gritar: 'você está nos enganando, sabemos que microfone só funciona se estiver ligado num fio, somos gente humilde, mas não somos bobos, isso aí é um disco gravado!'. Então a ET branquela e ruiva que estava no palco pacificamente estendeu o microfone ao cacique para que ele pudesse constatar que se tratava mesmo de um produto de outro planeta. O planeta Nova York. Ele aproximou a boca e disse um 'alô' bem baixinho. Já estava quase comemorando o embuste, quando o pajé, este sim bem mais destemido, tomou-lhe o microfone e deu um grito de guerra que quase arrebentou os tímpanos de todos nós. A notícia se espalhou e o show foi uma maravilha completa. Dia seguinte a tribo estava tão deslumbrada com os deuses astronautas que até ajudaram a desmontar o equipamento de som e carregar os caminhões. Hoje qualquer tribozinha por aqui tem microfone sem fio.

E por mais que roqueiro brasileiro já não tenha mais cara de bandido (roqueiro no meu tempo era oposição, hoje é situação) esse tal de roquenrou continua oferecendo delícias, pelo menos para mim. Depois de quarenta anos na estrada, nos bailes da vida, percebo que o prazer de trabalhar com música permanece intacto feito um faraó imortal. Mas ultimamente ando meio reclamona, deve ser a idade. Tenho pavor de voar de avião, odeio dormir em hotéis, às vezes estou com TPM existencial e gostaria mais é de ficar enfurnada em casa com meus bichos. E as queixas prosseguem até o momento de pisar no palco. A partir daí eis que acontece o tal milagre da transformação da água em vinho. Pra se ter uma idéia, nem se uma barata gosmenta com aquelas antenas asquerosas aparecer no palco vai me tirar o prazer de fazer as pessoas terem prazer comigo.

E quando saio de lá a farra continua no camarim recebendo os fãs e ouvindo deles que não posso nunca parar de fazer show porque suas vidas virariam um tédio. Mal sabem eles que o tédio é todo meu quando estou longe do palco. Que ninguém nos ouça, mas estou pensando seriamente em tirar o time de cena e passar mais tempo com Ziza Lee, minha delícia de neta. Também quero acabar de escrever meu livro e morar no mato pra fazer uma horta. Vou adotar um monte de bichos, aprender a cozinhar e falar chinês. Preciso parar de fumar e beber mais água... putz, são tantas emoções que me esperam. Os shows tomam todo o meu tempo, além do que já fiz trocentos milhões, já está de bom tamanho e eu agradeço a Deus pelo privilégio de ter sobrevivido de música durante tanto tempo. Quando digo isso sempre ouço o feedback: 'seus amigos tropicalistas Caetano, Gil, Tom Zé, Gal e Bethânia são mais velhos do que você e fazem cada vez mais shows.'

Ah, mas eles são terráqueos geniais, eu sou apenas uma ET".


Rita Lee, março de 2007

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